domingo, 5 de junho de 2011

Banalização do mal

Tais Machado faz um alerta: não podemos fechar os olhos e nos conformar com as maldades do mundo

Em nossos dias, as expressões de maldades são cada vez mais explícitas, porém, tantas que se tornam corriqueiras, passam despercebidas ou duram cada vez menos no noticiário. Afinal, em seguida a um destaque trágico, há outra imagem que surge quase instantaneamente, ou aparece logo outra notícia do horror cotidiano que preenche o espaço midiático, e consequentemente, toma nossa atenção, ou ainda, simplesmente nos distraímos rapidamente com outro entretenimento qualquer.

A coluna do Ruy Castro, na Folha de S.Paulo do último dia 11 de março, trouxe uma ponderação necessária. Veja:

"A 30 de junho de 1960, a comerciária Neyde, 23 anos, pegou na escola Taninha, 4, filha de seu amante, o motorista Antonio, que se negava a abandonar a família por ela. Levou Taninha para os fundos do matadouro da Penha, deu-lhe um tiro na nuca, jogou álcool na menina e incendiou-a. Neyde foi presa e, nas primeiras 12 horas, negou com firmeza a acusação. Mas, por algum motivo, contou tudo a um radialista presente no interrogatório. Pela frieza com que falou, foi chamada de 'Mulher-monstro', 'A Besta Humana' e, por fim, 'A Fera da Penha'. Condenada a 33 anos, cumpriu 15 e saiu por bom comportamento. Hoje, aos 72 anos, vive reclusa na pacata Cascadura. Os vizinhos conhecem sua história e seu apodo - quem não?

A 28 de fevereiro último, em Duque de Caxias, outra menina, Lavínia, 6, foi sequestrada e morta pela amante de seu pai - num quarto de hotel, estrangulada com o cadarço do próprio tênis. Luciene, a amante, confessou. Não tão friamente quanto Neyde, mas, como esta, ao sair da delegacia também ouviu gritos de 'Lincha!' e 'Assassina!'.

A associação entre os dois casos é óbvia e tem sido feita. Mas apenas porque, em 1960, a história da 'Fera da Penha', com seu tom da grega 'Medeia', era mesmo impressionante, e talvez nos chocássemos mais. Os jornais levaram um ano escrevendo todo dia sobre ela, a ponto que, cinquenta anos depois, continua atual. Mesmo hoje, ao chamar Luciene de 'Fera de Caxias', é da 'Fera da Penha' que se está falando.

Doze dias depois do fato, a 'Fera de Caxias' ainda está nos jornais e TVs. Mas seu espaço no noticiário já diminuiu. Mais um pouco desaparecerá e, em breve, terá sido esquecida. É nossa sensibilidade que está encolhendo a olho nu. Temo que, no futuro, ninguém mais se impressione e, por banais, deixemos de tomar conhecimento de notícias outrora chocantes como esta".

A filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal", em seu livro "Eichmann em Jerusalém". Essa alemã de origem judia, uma das pessoas mais influentes do século XX, em sua análise da sociedade, considerando o contexto nazista, identificou indivíduos que agiam segundo as regras sem pensar muito a respeito de seus atos, do que lhes era exigido. Se a norma recomendava tortura, execução ou outras perversidades, eles poucos se importavam, afinal eles apenas estavam cumprido seus deveres, obedecendo às ordens, satisfazendo as solicitações de seus superiores. E ela então chamava a atenção em seus escritos quanto à importância de se estar alerta em relação a tal postura.

A natureza humana é capaz de cometer atos de extrema crueldade, sem nenhuma compaixão com outros seres humanos, sem que sejam, necessariamente, psicopatas ou tenham quaisquer outros transtornos de personalidade comprometedores no convívio da sociedade. Ou seja, são tidos como "normais", são aceitos, acolhidos, e sentem-se justificados, isto é, não se perturbam com seus posicionamentos ainda que isso custe a vida ou dignidade do próximo.

Na Bíblia, lemos muitos relatos dessa capacidade humana, contudo, parece estar se agravando. E o apóstolo Paulo também já comentava a respeito, ao escrever para seu discípulo Timóteo: "Saiba disto: nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis. Os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios, sem amor pela família, irreconciliáveis, caluniadores, sem domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, traidores, precipitados, soberbos, mais amantes dos prazeres do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando o seu poder" (2Tm 3.1-5).

Num contexto como esse, o valor e sabor do evangelho naturalmente podem ganhar um destaque ainda maior. Pois, em meio às densas trevas, uma pequena luz é logo percebida. Se nossa sociedade, dita cristã, está cada vez mais degradada, é preciso repensar que evangelho tem sido pregado.

Se a postura dos que se denominam cristãos não é muito diferente em relação aos não cristãos, então, a essência do evangelho de Jesus Cristo foi abandonada. Um evangelho que, ao invés de nos tornar pessoas mais sensíveis e compassivas, nos torna mais endurecidos e ensimesmados é qualquer outra coisa menos o evangelho de Cristo.

É mesmo um desafio a estarmos alertas. Em tempos de velocidade, acúmulo de informações, demandas criadas o tempo todo e muita pressão, é fácil nossa atenção simplesmente ser desviada para o próximo item da agenda, negligenciando o cuidado com nossos atos, as posturas que assumimos, a omissão ou mesmo a indiferença que cultivamos em relação a um bocado de coisas ao nosso redor e em nossa sociedade.
Pouca reflexão, muita agitação, e um estado de confusão quase permanente. Seria essa a vida abundante a que Jesus se referia (Jo 10.10)?

Há sutilezas, pequenos detalhes, que não nos chamam mais a atenção, não nos causam estranheza porque consideramos que faz parte do viver e assimilamos como "normal" em nossa época. Seguimos a multidão, não questionamos o sistema em que vivemos, simplesmente aderimos. Justificamo-nos a nós mesmos dizendo que é assim mesmo que funciona, embora cônscios de que não era para ser assim. Procuramos é nos proteger de prejuízos. Qualquer coisa que nos faça sentir ameaçados faz-nos reagir com pressa e, em boa parte das vezes, nosso mecanismo racional entra agilmente em ação, explicando a quem interessar possa que não temos culpa alguma. Uma "esperteza" travestida de prudência que não passa de safadeza, vileza disfarçada.

Nosso estilo de vida e escolhas cotidianas contribuem para a dignidade do ser humano ou corroboram com o sistema vigente? Nossa postura promove a vida ou mistura-se com o fluxo da maioria onde a banalização do mal se perpetua?

Ser discípulo de Jesus Cristo significa entrar pela porta estreita e seguir por um caminho apertado (Mt 7.13-14). Nesse caminho andam poucos, porém, conscientes de que as escolhas de cada dia serão diferentes da maioria. Serão escolhas difíceis, é fato, contudo, o fim delas é a celebração da vida.

O evangelho de Jesus Cristo amplia nossa consciência, muda nossos referenciais, regenera nossa maneira de pensar, transforma meninos em homens capazes de dar sua própria vida e garotas mimadas em servas fiéis. Assim caminha a comunidade, ao menos, a verdadeira comunidade formada por e a partir de Jesus. E que a originalidade do Reino de Deus se expanda, semeando vida com todas as suas implicações que isso consiste, ou seja, de maneira integral e radical. Que a bondade do amor seja a resposta prática diante da banalização do mal que nos assedia.

Por: Tais Machado

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